Contos
sem fim – Paris je t’aime
Paris je t’aime (I)
agosto 2015
Geraldo
Picanço
(para
Manu)
14:30,
Aeroporto Charles de Gaulle, horário de Paris.
Depois
de pegar as malas, passar com os filhos pela Alfândega, encontrar os primos,
levar aquele papo de quem não se vê há muito tempo, distribuir pacotes de Café
Capital e... descansar na bela mansarda, que bem conhecia, na rue de Lille,
perto do Sena e da muvuca! O apartamento, mais parecendo um atelier, foi
herança de seu pai. Um salão em uma esquina, cercado de vitrôs que de tão sujos
pouco deixavam passar a claridade, varandinha onde ficava o aquecedor a óleo;
uma cama de casal com dossel de ferro em um dos cantos; um quarto pequeno, com
uma bicama, onde ficariam os filhos e um quarto de banho com tudo que se tem de
direito - de bidê a banheira esmaltada -, e uma pequena cozinha, básica, com um
fogão elétrico. Tudo precisando de reformas nas instalações, pintura e
conservação dos móveis, pois não era usado há bastante tempo. Problemas de
litígios na herança, principalmente por conta das leis que regem o uso dos
prédios na região. Não conseguindo vender e vendo os gastos que teriam com
reformas para alugar concordaram em deixar a bomba para o filho bastardo de
Giles, de quem todos gostavam, e que não iria interferir nos demais assuntos da
família.
Tudo
bem. Era um faz tudo, entendia de tudo um pouco. Com o auxílio dos filhos daria
um jeito no lar. Tantos anos para que o sonho se realizasse, não seriam esses
senões que iriam atrapalhar. Finalmente estava lá. Como um dia o pai prometera.
Uma
chuveirada bem quente, tirar as roupas das malas, e descer com os filhos até um
café, curtir um pouco o ar da Cidade Luz e passear à beira do Sena. Depois
pensaria na arrumação do APÊ.
Paris, jê t’aime (II)
Segunda
feira assumiria sua nova ocupação: trabalhar na padaria, ou boulangerie, da
família na rue Du Bac. Pertinho de casa, seria um ótimo começo. A casa já tinha
um certo nome, iria acrescentar o plus, que imaginava desde os velhos papos com
o pai. Pão de Queijo! Mas com que queijos! Desde o brie até os mais encorpados
como Camembert, Roquefort, Comte, Gruyére e, até quem sabe, um Vacherin Mont
d’Or. Sonhos. Estudou muito para saber bem o que queria. O coração batia forte.
Teria todo o fim de semana para amainar sua ansiedade.
Passear
com os filhos pelos cantinhos da margem esquerda do Sena, olhar para as pontes,
para Notre Dame, para as filas na porta do d’Orsay com seu Rinoceronte. Muita
coisa para aproveitar. Com tempo de sobra. Era sua nova casa, seu novo lugar.
Doravante seria Local.
Lembrava
com carinho do pai, com quem sempre teve afinidades mesmo que fortuitas. Ouvia
suas canções preferidas de Yves Montand, Charles Trenet, Piaff. Nas férias,
sempre que a grana dava, saía de Goiás e vinha pra curtir um esqui nos Alpes,
visitar castelos que só existiam na sua imaginação, conhecer as delícias do bem
comer. Vinhos? Muito pouco. O pai, piloto de caças, era abstêmio. Mas que
admirava os que sabiam apreciar e degustar um bom vinho nos momentos certos. E
mesmo nos errados desde que com prazer.
Nas
caminhadas com os filhos contava como chegaram ali. Suas venturas e
desventuras. A grandeza de ter uma mãe que soube encarar a vida com altivez,
com orgulho, sem nunca se sentir diminuída. Foi apaixonada, se entregou
totalmente e foi correspondida enquanto o encanto durou. Ele, Antonio, ou
Antoine, ou Toni, como era chamado, foi fruto desse amor.
Tudo
começou quando Giles, piloto e instrutor da Marcel Dassault, fabricante dos
Mirage franceses entregues ao Brasil, chegou a Anápolis, sede da Base Aérea
encarregada da segurança de Brasília. Anita, a mais bela mulher do local,
admirada e desejada, era filha de um tenente coronel da FAB, figura sisuda,
quadrada, responsável pela operação dos radares. Por isso mesmo o chamavam de
... Radar. Não tirava a filha do foco. Sabia dos gaviões que cercavam a moça.
Mas
eis que entra na opereta o capitão Giles. Uma mistura de Belmondo e Yves
Montand. Sua figura era impossível de passar despercebida. Foullard ao vento,
vasta cabeleira ao vento e, logo que conseguiu, uma bela moto de 500
cilindradas.
Anita
resistiria a tanto charme?
Paris, je t’aime (III)
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Giles
usava uma touca de couro de aviador dos tempos da 2ª. Guerra. Logo ficou
conhecido na base; era quem trouxera de Bordeaux os primeiros Mirage e agora
voltava com os alunos treinados em Dijon, falando um português até razoável.
Todos os dias passava em frente à casa do coronel Radar e avistava Anita
cuidando do jardim. Bem, aí já é uma história de amor que resultou no
nascimento de Toni. Giles não fugiu à sua responsabilidade e registrou o jovem
e assumiu todos os gastos que viessem para sua educação. Mas era um homem do
mundo. Não ficaria ali por muito tempo. Toni cresceu com a mãe e o avô ao som
de Serge Regiani, Aznavour, Michel Legrand.
O
tempo passou, descobriu suas qualidades de gourmet e acabou, bem cedo, sócio de
uma padaria em Anápolis, que também era ponto de encontro da juventude local
que fazia o seu happy hour nas poucas mesas ou sentados nas caixas de cerveja
na calçada. Assim conheceu Linda, 19 anos e logo estavam casados.
Ela,
aos poucos também aprendeu francês. Foram várias vezes visitar o pai, o que a
fez uma leitora voraz das obras dos clássicos. Dessa fascinação seria
impossível que não deixasse um legado: os gêmeos Rimbaud e Baudelaire. Que por
uma dessas coisas da vida, que nem o próprio destino explica, foram registrados
como Rimbô e Bodelér.
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Parênteses:
“De manhã eu tinha o olhar tão perdido e a postura tão morta, que aqueles que encontrei talvez não me vissem.”
“De manhã eu tinha o olhar tão perdido e a postura tão morta, que aqueles que encontrei talvez não me vissem.”
“A
mão na pena, vale a mão na enxada.”
.
“Certa
vez, num belo jardim,
Ao
arrastar minha atonia,
Senti,
como cruel ironia,
O
sol erguer-se contra mim;”
.
Paris, je t’aime (IV)
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Bem
cedo saíram para colocar a vida doméstica em dia. Passar no banco, ver se
estava tudo certo com os cartões, providenciar talões de cheques e pegar uns
euros para eventuais despesas. Tudo a pé ou de metrô. Que diferença!
Sua
família parisiense providenciou o necessário para o dia a dia, como roupas de
cama e banho, mantimentos básicos para o início de uma nova vida e, também,
contrataram uma arrumadeira para cuidar deles. Uma velha senhora que conhecia
muito bem das suas passagens por essas bandas. Cuidava de seu pai como se fora
um filho. Dizem as más línguas que era mais do que isso. Deixa prá lá, coisas
de solteirão. Quando voltassem, lá pelas seis e meia da tarde encontrariam, com
certeza, um novo apartamento com cara de lar. E com a geladeira que tinham
encomendado funcionando, esperava.
Estavam
felizes. As economias que fez durante anos pensando nesse momento dava uma
certa tranqüilidade. Poderiam sobreviver sem sustos.
No
passeio passaram por uma loja de departamentos, dessas tamanho família, se
olharam e entraram.
Um
som. Precisavam de um, pequeno, compacto, mas potente o suficiente para encher
a casa de alegria. Com essas modernidades de agora tiveram a bela idéia de
passar para pendrives e cartões toda a coleção de CDs e DVDs. A escolha foi
difícil. Muitas opções. Que diferença da Casa & Vídeo. Viram também as TVs,
mas deixaram para depois. Não comprar nada na empolgação. Por enquanto se
contentariam com o notebook e tablets. Uma boa operadora de telefonia e teriam
diversão por um bom tempo. Viva o wifi e o 4G!
Na
saída notou que os olhos dos gêmeos brilharam ao ver as duas guitarras negras
em promoção. Riu silenciosamente. Quem sabe no dia seguinte, ou no outro.
Antes
teriam de conversar com seus primos sobre colégio para a dupla. Chegaram,
pensadamente, no período de férias escolares. Prioridade Zero.
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Paris, je t’aime (V)
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Os
gêmeos, por mais parecidos que fossem, tinham gostos diferentes. Bodelér
preferia os clássicos da arte e da música enquanto Rimbô gostava de arte
moderna e jazz. Como o pai, foram
acostumados a ouvir, entre outros gêneros, rock progressivo e os inevitáveis
Beatles. E alguns instrumentais de música brasileira. Mas isso ficava para as
horas de solidão de Toni, que compartilhavam silenciosamente.
Para
desespero de Toni, os dois tinham algo em comum: a música sertaneja. Em Anápolis era impossível ir a qualquer
lugar da moda sem esbarrar com uma dupla, fosse de coroas ou jovens. Grupos se
formavam - e sumiam - tocando em bares e clubes. Eram sucesso com as meninas. E
os dois, bem apessoados, com aquelas calças jeans desbotadas e justas, botas,
cinto com fivelão e os indefectíveis chapéus de caubóis não faziam feio. Desde pequenos, no colégio ou no clube dos
oficiais da base aérea, participavam de saraus, festivais de música, sempre com
sucesso. Gêmeos não são comuns, ainda mais afinados. Gostavam de ser parte da
vida social da comunidade.
Sem
entrar em detalhes sobre quais duplas ou grupos mais gostavam entre os
brasileiros, tinham especial preferência pelos velhos Simon & Garfunkel e
Everly Brothers. Toni teve de se render ao gosto dos jovens e dar de presente
em um dos aniversários um violão para cada um. Nada de espetacular, apenas
violões comuns. Logo aprenderam os primeiros sucessos com os amigos e passaram
a tocar em duo.
Com
medo de ver tudo se perder naqueles quatro ou cinco acordes, colocou-os para
ter aulas de piano com um amigo carioca, freqüentador do famoso Beco das
Garrafas. No que fez muito bem. Um dia, ao chegar casa, ouviu um piano a quatro
mãos interpretando “Imagem”. Era um presente preparado há tempo, pois sabiam da
paixão que seu pai tinha por Luiz Eça e principalmente por essa música.
Harmonia perfeita. O professor sabia como conquistar o amigo. Com isso Rimbô e
Bodelér abriram muitas portas.
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Paris, je t’aime (VI)
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Instalados,
passeados, acarinhados pelos parentes parisienses - que descobriram o quanto
eram pessoas amáveis -, começaram a tomar pé da situação. Toni, ou Tonî para o
seu gáudio, em pouco tempo passou a entender o lado financeiro e o funcionamento
da padaria. Levava jeito para os negócios e a administração do lugar logo
estava entregue a ele.
Ainda
sem o tão perseguido pão de queijo, que estavam deixando para quando conhecesse
o suficiente da pâtisserie francesa.
Os
gêmeos se entrosavam perfeitamente na escola onde conviviam com descendentes de
várias nacionalidades, das antigas colônias francesas, principalmente. Uma
ONUZINHA ou ONINHA, como preferiam. O sotaque dos jovens, cantado, encantava as
meninas. Resolveram andar separados para que percebessem que tinham
personalidade própria, luz própria. Um mais chegado às ciências e o outro ao
lado filosófico. Como novatos na área descobriram que o melhor a fazer era
passar por desentendidos das do meio de vida local, de suas características
sociais e políticas, mas não bobos, ingênuos. Pra que buscar lados se eram
forasteiros, recém chegados, independentemente de suas duplas nacionalidades? A
onda de refugiados, imigrantes, que a cada dia aumentava preocupava a todos,
inclusive a eles que tinham de mostrar que não estavam ali para roubar o lugar
de ninguém, mas que gostariam de competir em suas áreas como qualquer um, em pé
de igualdade.
Mas
existia algo que os tornava diferentes. A grande vocação para a música. A
extrema sensibilidade que aflorava cada dia mais. A saudade dos amigos, das
reuniões, festinhas, das noitadas fugidias. A necessidade de exercitar também
sua arte.
Era
hora de voltar àquela loja de departamentos e ver se as guitarras ainda estavam
lá.
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Paris, je t’aime (VII)
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As
guitarras acústicas, mas com captadores, chegaram primeiro. Não gostaram do
amplificador, sem os recursos a que estavam habituados. Procurariam um de 2ª.
mão pela internet ou mesmo com os novos amigos.
No
tablet tinham todas as cifras de suas canções preferidas ‘a mão. Saudades,
muitas saudades. Das reuniões, da cantoria na padaria. Para variar lembravam-se
das mais antigas, as que - dando uma puxadinha de saco - seu pai gostava, com
novos arranjos, harmonias modernas, acordes dissonantes. Porém com o toque
caipira.
Os
colegas do liceu (escola particular, de ensino geral e tecnológico, lá pelas
bandas do Louvre e perto da estação do metrô Sentier ou seja, perto de casa)
quando souberam da aquisição logo quiseram ouvi-los. Seriam bons mesmo ou
apenas papo? Tocariam as composições do internacional Michel Teló? O “Ai se eu
te pego”? Não era a praia deles, mas aprenderiam para agradar. Estavam mais
para o Sertanejo Raiz: Pena Branca e
Xavantinho, Renato Teixeira, Milionário e Zé Rico, Sérgio Reis, João Mineiro e
Marciano e outros. Pela internet ouviam a Radio Sertaneja Raiz (http://www.radiosertanejaraiz.com.br/).
Não fariam feio. Como não podiam levar seus instrumentos para o colégio
conseguiram levar um papo com o português dono de um café ali pertinho e
convencê-lo a guardar as guitarras. Condição: levar os colegas para consumir.
Em
pouco tempo o café virou point de estudantes. A cantoria ia direto, sem parar,
com todos as canções da moda. Além dos shows que a dupla promovia. Outros
jovens músicos começaram a aparecer. O café não dava mais conta. Conversaram
com Toni que liberou o apartamento para que ensaiassem. Um dos melhores
argumentos usados foi o novo repertório: cancioneiro francês em Sertanejô. La
Mer, Douce France, Les Feuilles Mortes e até Legrand (Ne me quitte pas).
Com
o entusiasmo do pai e, para desespero de Seu Manoel da padaria, digo, do Café,
vendo essa nova clientela sumir, estava aberta a temporada musical do Sertanejô
Française. Mas Seu Manoel era esperto. Um amigo da terrinha tinha nas
redondezas um restaurante de comida típica portuguesa que vivia às moscas.
Poderiam ensaiar, levar os colegas e depois tocar à noite para quem aparecesse
para jantar.
Toni
estava feliz. Juntou toda a família para jantar no Portugais e assistir ao novo
conjunto: “Rimbó e Bodelér avec son Sertanejôs”.
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Paris, je t’aime (VIII)
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Só
existia uma obrigação: terminar os estudos. Não ser mais um na multidão de
imigrantes.
Tudo
ia de vento em popa; escola, uma graninha do restaurante – que incluía o
direito a levar as namoradinhas e tirar uma onda -, o reconhecimento por suas
qualidades musicais. Ao menos para a colônia portuguesa e seus amigos
brasileiros e franceses, que começaram a curtir o local. Fados em “sertanejô”
era um achado . Canções de Amália, então... sucesso garantido. Não davam conta
dos pedidos, sempre acompanhados de uma boa gorjeta. Em euros, brincavam.
Um
belo dia, digo, uma não tão bela tarde, se depararam com uma das tão comuns
manifestações populares por melhores salários ou condições trabalhistas.
Enfermeiros com cartazes e faixas infernizavam a vida dos apressados trabalhadores
querendo voltar pra casa e dos policiais, com seus uniformes pesados, armados
até os dentes, paranóia dos europeus com a invasão dos forasteiros vindos dos
países árabes.
Resolveram
participar, inventando musiquinhas de ordem que logo eram repetidas: “Uh, Uh,
Uh, vão tomar no cu!”, “Cu da mãe tem dente, morde o pau da gente!” E riam.
Parece
que algum policial entendia português e o que era uma manifestação pacífica
virou pancadaria. O pau comeu na Maison de Nocá.
Acabaram
em uma delegacia onde fizeram algumas amizades entre os manifestantes e
policiais que perceberam a gozação dos brasileiros. Tudo em paz. Lá mesmo
cantaram algumas musicas, mostrando que eram “profissionais musicais”.
Estudantes, mas profissionais.
Liberados,
foram para a estação mais próxima do metrô e ainda em ritmo de farra tiraram os
violões das caixas e começaram a cantar em dueto. O que mais poderia acontecer?
Voltar para a delegacia? Lá já estava tudo dominado. Em pouco tempo – ou
bastante – se fez uma pequena aglomeração, crescente, que aplaudia os gêmeos.
Nos estojos abertos começaram a aparecer notas e moedas. Entusiasmados
continuaram com um repertório eclético onde não faltava Michel Teló e Charles
Aznavour. Até uma versão de Garota de Ipanema inventaram: “La jeune fille du
Seine”.
Umas
duas horas depois decidiram dar por encerrada a apresentação prometendo voltar
no dia seguinte. Tinham muito para contar ao Toni.
Como
prometido voltaram e fizeram dessa e de outras estações um faturamento extra.
Alguns dos usuários do metrô tornaram-se “habitués”. Entre eles um senhor
grande, gordo, calvo, óculos fundo de garrafa, com o mesmo casaco de couro com
o emblema da Harley Davidson nas costas que os procurou ao guardarem os
instrumentos. Tinha uma proposta para fazer um show em uma casa de espetáculos
no centro de Paris. Combinaram um encontro em sua casa, na presença do pai.
Tudo
acertado, combinado. Repertório escolhido, fariam o show de abertura, escada,
para a atração principal, uma banda de funk moçambicana que estava fazendo
sucesso em sua primeira turnê européia.
O
cachê, para iniciantes, era inimaginável. Com direito a ter equipamento e
técnico de som próprio. No caso, um colega de liceu que também virou “roadie”.
Passagem
de som marcada para sete da noite, sábado, dia 14 de novembro, no Ba’ Ta’ Clan.
Nem um minuto a mais ou a menos sob o risco de serem rifados.
......
Continua
(?)
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Sim, continua, pô!
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