Wednesday, December 02, 2015

Contos sem fim – Paris je t’aime



Contos sem fim – Paris je t’aime


Paris je t’aime (I)
agosto 2015
Geraldo Picanço
(para Manu)
14:30, Aeroporto Charles de Gaulle, horário de Paris.
Depois de pegar as malas, passar com os filhos pela Alfândega, encontrar os primos, levar aquele papo de quem não se vê há muito tempo, distribuir pacotes de Café Capital e... descansar na bela mansarda, que bem conhecia, na rue de Lille, perto do Sena e da muvuca! O apartamento, mais parecendo um atelier, foi herança de seu pai. Um salão em uma esquina, cercado de vitrôs que de tão sujos pouco deixavam passar a claridade, varandinha onde ficava o aquecedor a óleo; uma cama de casal com dossel de ferro em um dos cantos; um quarto pequeno, com uma bicama, onde ficariam os filhos e um quarto de banho com tudo que se tem de direito - de bidê a banheira esmaltada -, e uma pequena cozinha, básica, com um fogão elétrico. Tudo precisando de reformas nas instalações, pintura e conservação dos móveis, pois não era usado há bastante tempo. Problemas de litígios na herança, principalmente por conta das leis que regem o uso dos prédios na região. Não conseguindo vender e vendo os gastos que teriam com reformas para alugar concordaram em deixar a bomba para o filho bastardo de Giles, de quem todos gostavam, e que não iria interferir nos demais assuntos da família.
Tudo bem. Era um faz tudo, entendia de tudo um pouco. Com o auxílio dos filhos daria um jeito no lar. Tantos anos para que o sonho se realizasse, não seriam esses senões que iriam atrapalhar. Finalmente estava lá. Como um dia o pai prometera.

Uma chuveirada bem quente, tirar as roupas das malas, e descer com os filhos até um café, curtir um pouco o ar da Cidade Luz e passear à beira do Sena. Depois pensaria na arrumação do APÊ.

Paris, jê t’aime (II)

Segunda feira assumiria sua nova ocupação: trabalhar na padaria, ou boulangerie, da família na rue Du Bac. Pertinho de casa, seria um ótimo começo. A casa já tinha um certo nome, iria acrescentar o plus, que imaginava desde os velhos papos com o pai. Pão de Queijo! Mas com que queijos! Desde o brie até os mais encorpados como Camembert, Roquefort, Comte, Gruyére e, até quem sabe, um Vacherin Mont d’Or. Sonhos. Estudou muito para saber bem o que queria. O coração batia forte. Teria todo o fim de semana para amainar sua ansiedade.
Passear com os filhos pelos cantinhos da margem esquerda do Sena, olhar para as pontes, para Notre Dame, para as filas na porta do d’Orsay com seu Rinoceronte. Muita coisa para aproveitar. Com tempo de sobra. Era sua nova casa, seu novo lugar. Doravante seria Local.
Lembrava com carinho do pai, com quem sempre teve afinidades mesmo que fortuitas. Ouvia suas canções preferidas de Yves Montand, Charles Trenet, Piaff. Nas férias, sempre que a grana dava, saía de Goiás e vinha pra curtir um esqui nos Alpes, visitar castelos que só existiam na sua imaginação, conhecer as delícias do bem comer. Vinhos? Muito pouco. O pai, piloto de caças, era abstêmio. Mas que admirava os que sabiam apreciar e degustar um bom vinho nos momentos certos. E mesmo nos errados desde que com prazer.
Nas caminhadas com os filhos contava como chegaram ali. Suas venturas e desventuras. A grandeza de ter uma mãe que soube encarar a vida com altivez, com orgulho, sem nunca se sentir diminuída. Foi apaixonada, se entregou totalmente e foi correspondida enquanto o encanto durou. Ele, Antonio, ou Antoine, ou Toni, como era chamado, foi fruto desse amor.
Tudo começou quando Giles, piloto e instrutor da Marcel Dassault, fabricante dos Mirage franceses entregues ao Brasil, chegou a Anápolis, sede da Base Aérea encarregada da segurança de Brasília. Anita, a mais bela mulher do local, admirada e desejada, era filha de um tenente coronel da FAB, figura sisuda, quadrada, responsável pela operação dos radares. Por isso mesmo o chamavam de ... Radar. Não tirava a filha do foco. Sabia dos gaviões que cercavam a moça.
Mas eis que entra na opereta o capitão Giles. Uma mistura de Belmondo e Yves Montand. Sua figura era impossível de passar despercebida. Foullard ao vento, vasta cabeleira ao vento e, logo que conseguiu, uma bela moto de 500 cilindradas.
Anita resistiria a tanto charme?
Paris, je t’aime (III)
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Giles usava uma touca de couro de aviador dos tempos da 2ª. Guerra. Logo ficou conhecido na base; era quem trouxera de Bordeaux os primeiros Mirage e agora voltava com os alunos treinados em Dijon, falando um português até razoável. Todos os dias passava em frente à casa do coronel Radar e avistava Anita cuidando do jardim. Bem, aí já é uma história de amor que resultou no nascimento de Toni. Giles não fugiu à sua responsabilidade e registrou o jovem e assumiu todos os gastos que viessem para sua educação. Mas era um homem do mundo. Não ficaria ali por muito tempo. Toni cresceu com a mãe e o avô ao som de Serge Regiani, Aznavour, Michel Legrand.
O tempo passou, descobriu suas qualidades de gourmet e acabou, bem cedo, sócio de uma padaria em Anápolis, que também era ponto de encontro da juventude local que fazia o seu happy hour nas poucas mesas ou sentados nas caixas de cerveja na calçada. Assim conheceu Linda, 19 anos e logo estavam casados.
Ela, aos poucos também aprendeu francês. Foram várias vezes visitar o pai, o que a fez uma leitora voraz das obras dos clássicos. Dessa fascinação seria impossível que não deixasse um legado: os gêmeos Rimbaud e Baudelaire. Que por uma dessas coisas da vida, que nem o próprio destino explica, foram registrados como Rimbô e Bodelér.
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Parênteses:
“De manhã eu tinha o olhar tão perdido e a postura tão morta, que aqueles que encontrei talvez não me vissem.”
“A mão na pena, vale a mão na enxada.”
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“Certa vez, num belo jardim,
Ao arrastar minha atonia,
Senti, como cruel ironia,
O sol erguer-se contra mim;”
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Paris, je t’aime (IV)
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Bem cedo saíram para colocar a vida doméstica em dia. Passar no banco, ver se estava tudo certo com os cartões, providenciar talões de cheques e pegar uns euros para eventuais despesas. Tudo a pé ou de metrô. Que diferença!
Sua família parisiense providenciou o necessário para o dia a dia, como roupas de cama e banho, mantimentos básicos para o início de uma nova vida e, também, contrataram uma arrumadeira para cuidar deles. Uma velha senhora que conhecia muito bem das suas passagens por essas bandas. Cuidava de seu pai como se fora um filho. Dizem as más línguas que era mais do que isso. Deixa prá lá, coisas de solteirão. Quando voltassem, lá pelas seis e meia da tarde encontrariam, com certeza, um novo apartamento com cara de lar. E com a geladeira que tinham encomendado funcionando, esperava.
Estavam felizes. As economias que fez durante anos pensando nesse momento dava uma certa tranqüilidade. Poderiam sobreviver sem sustos.
No passeio passaram por uma loja de departamentos, dessas tamanho família, se olharam e entraram.
Um som. Precisavam de um, pequeno, compacto, mas potente o suficiente para encher a casa de alegria. Com essas modernidades de agora tiveram a bela idéia de passar para pendrives e cartões toda a coleção de CDs e DVDs. A escolha foi difícil. Muitas opções. Que diferença da Casa & Vídeo. Viram também as TVs, mas deixaram para depois. Não comprar nada na empolgação. Por enquanto se contentariam com o notebook e tablets. Uma boa operadora de telefonia e teriam diversão por um bom tempo. Viva o wifi e o 4G!
Na saída notou que os olhos dos gêmeos brilharam ao ver as duas guitarras negras em promoção. Riu silenciosamente. Quem sabe no dia seguinte, ou no outro.
Antes teriam de conversar com seus primos sobre colégio para a dupla. Chegaram, pensadamente, no período de férias escolares. Prioridade Zero.
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Paris, je t’aime (V)
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Os gêmeos, por mais parecidos que fossem, tinham gostos diferentes. Bodelér preferia os clássicos da arte e da música enquanto Rimbô gostava de arte moderna e jazz.  Como o pai, foram acostumados a ouvir, entre outros gêneros, rock progressivo e os inevitáveis Beatles. E alguns instrumentais de música brasileira. Mas isso ficava para as horas de solidão de Toni, que compartilhavam silenciosamente.
Para desespero de Toni, os dois tinham algo em comum: a música sertaneja.  Em Anápolis era impossível ir a qualquer lugar da moda sem esbarrar com uma dupla, fosse de coroas ou jovens. Grupos se formavam - e sumiam - tocando em bares e clubes. Eram sucesso com as meninas. E os dois, bem apessoados, com aquelas calças jeans desbotadas e justas, botas, cinto com fivelão e os indefectíveis chapéus de caubóis não faziam feio.  Desde pequenos, no colégio ou no clube dos oficiais da base aérea, participavam de saraus, festivais de música, sempre com sucesso. Gêmeos não são comuns, ainda mais afinados. Gostavam de ser parte da vida social da comunidade.
Sem entrar em detalhes sobre quais duplas ou grupos mais gostavam entre os brasileiros, tinham especial preferência pelos velhos Simon & Garfunkel e Everly Brothers. Toni teve de se render ao gosto dos jovens e dar de presente em um dos aniversários um violão para cada um. Nada de espetacular, apenas violões comuns. Logo aprenderam os primeiros sucessos com os amigos e passaram a tocar em duo.
Com medo de ver tudo se perder naqueles quatro ou cinco acordes, colocou-os para ter aulas de piano com um amigo carioca, freqüentador do famoso Beco das Garrafas. No que fez muito bem. Um dia, ao chegar casa, ouviu um piano a quatro mãos interpretando “Imagem”. Era um presente preparado há tempo, pois sabiam da paixão que seu pai tinha por Luiz Eça e principalmente por essa música. Harmonia perfeita. O professor sabia como conquistar o amigo. Com isso Rimbô e Bodelér abriram muitas portas.
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Paris, je t’aime (VI)
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Instalados, passeados, acarinhados pelos parentes parisienses - que descobriram o quanto eram pessoas amáveis -, começaram a tomar pé da situação. Toni, ou Tonî para o seu gáudio, em pouco tempo passou a entender o lado financeiro e o funcionamento da padaria. Levava jeito para os negócios e a administração do lugar logo estava entregue a ele.
Ainda sem o tão perseguido pão de queijo, que estavam deixando para quando conhecesse o suficiente da pâtisserie francesa.
Os gêmeos se entrosavam perfeitamente na escola onde conviviam com descendentes de várias nacionalidades, das antigas colônias francesas, principalmente. Uma ONUZINHA ou ONINHA, como preferiam. O sotaque dos jovens, cantado, encantava as meninas. Resolveram andar separados para que percebessem que tinham personalidade própria, luz própria. Um mais chegado às ciências e o outro ao lado filosófico. Como novatos na área descobriram que o melhor a fazer era passar por desentendidos das do meio de vida local, de suas características sociais e políticas, mas não bobos, ingênuos. Pra que buscar lados se eram forasteiros, recém chegados, independentemente de suas duplas nacionalidades? A onda de refugiados, imigrantes, que a cada dia aumentava preocupava a todos, inclusive a eles que tinham de mostrar que não estavam ali para roubar o lugar de ninguém, mas que gostariam de competir em suas áreas como qualquer um, em pé de igualdade.
Mas existia algo que os tornava diferentes. A grande vocação para a música. A extrema sensibilidade que aflorava cada dia mais. A saudade dos amigos, das reuniões, festinhas, das noitadas fugidias. A necessidade de exercitar também sua arte.
Era hora de voltar àquela loja de departamentos e ver se as guitarras ainda estavam lá.
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Paris, je t’aime (VII)
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As guitarras acústicas, mas com captadores, chegaram primeiro. Não gostaram do amplificador, sem os recursos a que estavam habituados. Procurariam um de 2ª. mão pela internet ou mesmo com os novos amigos.
No tablet tinham todas as cifras de suas canções preferidas ‘a mão. Saudades, muitas saudades. Das reuniões, da cantoria na padaria. Para variar lembravam-se das mais antigas, as que - dando uma puxadinha de saco - seu pai gostava, com novos arranjos, harmonias modernas, acordes dissonantes. Porém com o toque caipira.
Os colegas do liceu (escola particular, de ensino geral e tecnológico, lá pelas bandas do Louvre e perto da estação do metrô Sentier ou seja, perto de casa) quando souberam da aquisição logo quiseram ouvi-los. Seriam bons mesmo ou apenas papo? Tocariam as composições do internacional Michel Teló? O “Ai se eu te pego”? Não era a praia deles, mas aprenderiam para agradar. Estavam mais para o Sertanejo Raiz:  Pena Branca e Xavantinho, Renato Teixeira, Milionário e Zé Rico, Sérgio Reis, João Mineiro e Marciano e outros. Pela internet ouviam a Radio Sertaneja Raiz (http://www.radiosertanejaraiz.com.br/). Não fariam feio. Como não podiam levar seus instrumentos para o colégio conseguiram levar um papo com o português dono de um café ali pertinho e convencê-lo a guardar as guitarras. Condição: levar os colegas para consumir.
Em pouco tempo o café virou point de estudantes. A cantoria ia direto, sem parar, com todos as canções da moda. Além dos shows que a dupla promovia. Outros jovens músicos começaram a aparecer. O café não dava mais conta. Conversaram com Toni que liberou o apartamento para que ensaiassem. Um dos melhores argumentos usados foi o novo repertório: cancioneiro francês em Sertanejô. La Mer, Douce France, Les Feuilles Mortes e até Legrand (Ne me quitte pas).
Com o entusiasmo do pai e, para desespero de Seu Manoel da padaria, digo, do Café, vendo essa nova clientela sumir, estava aberta a temporada musical do Sertanejô Française. Mas Seu Manoel era esperto. Um amigo da terrinha tinha nas redondezas um restaurante de comida típica portuguesa que vivia às moscas. Poderiam ensaiar, levar os colegas e depois tocar à noite para quem aparecesse para jantar.
Toni estava feliz. Juntou toda a família para jantar no Portugais e assistir ao novo conjunto: “Rimbó e Bodelér avec son Sertanejôs”.
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Paris, je t’aime (VIII)
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Só existia uma obrigação: terminar os estudos. Não ser mais um na multidão de imigrantes.
Tudo ia de vento em popa; escola, uma graninha do restaurante – que incluía o direito a levar as namoradinhas e tirar uma onda -, o reconhecimento por suas qualidades musicais. Ao menos para a colônia portuguesa e seus amigos brasileiros e franceses, que começaram a curtir o local. Fados em “sertanejô” era um achado . Canções de Amália, então... sucesso garantido. Não davam conta dos pedidos, sempre acompanhados de uma boa gorjeta. Em euros, brincavam.
Um belo dia, digo, uma não tão bela tarde, se depararam com uma das tão comuns manifestações populares por melhores salários ou condições trabalhistas. Enfermeiros com cartazes e faixas infernizavam a vida dos apressados trabalhadores querendo voltar pra casa e dos policiais, com seus uniformes pesados, armados até os dentes, paranóia dos europeus com a invasão dos forasteiros vindos dos países árabes.
Resolveram participar, inventando musiquinhas de ordem que logo eram repetidas: “Uh, Uh, Uh, vão tomar no cu!”, “Cu da mãe tem dente, morde o pau da gente!” E riam.
Parece que algum policial entendia português e o que era uma manifestação pacífica virou pancadaria. O pau comeu na Maison de Nocá.
Acabaram em uma delegacia onde fizeram algumas amizades entre os manifestantes e policiais que perceberam a gozação dos brasileiros. Tudo em paz. Lá mesmo cantaram algumas musicas, mostrando que eram “profissionais musicais”. Estudantes, mas profissionais.
Liberados, foram para a estação mais próxima do metrô e ainda em ritmo de farra tiraram os violões das caixas e começaram a cantar em dueto. O que mais poderia acontecer? Voltar para a delegacia? Lá já estava tudo dominado. Em pouco tempo – ou bastante – se fez uma pequena aglomeração, crescente, que aplaudia os gêmeos. Nos estojos abertos começaram a aparecer notas e moedas. Entusiasmados continuaram com um repertório eclético onde não faltava Michel Teló e Charles Aznavour. Até uma versão de Garota de Ipanema inventaram: “La jeune fille du Seine”.
Umas duas horas depois decidiram dar por encerrada a apresentação prometendo voltar no dia seguinte. Tinham muito para contar ao Toni.
Como prometido voltaram e fizeram dessa e de outras estações um faturamento extra. Alguns dos usuários do metrô tornaram-se “habitués”. Entre eles um senhor grande, gordo, calvo, óculos fundo de garrafa, com o mesmo casaco de couro com o emblema da Harley Davidson nas costas que os procurou ao guardarem os instrumentos. Tinha uma proposta para fazer um show em uma casa de espetáculos no centro de Paris. Combinaram um encontro em sua casa, na presença do pai.
Tudo acertado, combinado. Repertório escolhido, fariam o show de abertura, escada, para a atração principal, uma banda de funk moçambicana que estava fazendo sucesso em sua primeira turnê européia.
O cachê, para iniciantes, era inimaginável. Com direito a ter equipamento e técnico de som próprio. No caso, um colega de liceu que também virou “roadie”.
Passagem de som marcada para sete da noite, sábado, dia 14 de novembro, no Ba’ Ta’ Clan. Nem um minuto a mais ou a menos sob o risco de serem rifados.
......
Continua (?)

2 comments:

IvanMarkx said...

Sim, continua, pô!

IvanMarkx said...

Sim, continua, pô!