Wednesday, December 02, 2015

Contos sem fim - Pérola



Contos sem fim - Pérola
(revendo mil novecentos e setenta e tanto)

“Bom dia. Sejam bem vindos a bordo de nossa moderna aeronave Boeing 737-200, prefixo Charlie, Juliet, Romeu da Cruzeiro do Sul. Sou a comissária Pérola e estarei ao inteiro dispor dos nossos passageiros nessa viagem com destino a Manaus com escalas em: São Paulo, Campo Grande, Rio Branco e Porto Velho. Nesse trecho de aproximadamente 40 minutos serviremos um desjejum com pãezinhos de queijo, sanduiches mistos e uma salada de frutas. Para acompanhar sucos de frutas, água,  refrigerantes, além de café.
”Por favor mantenham suas poltronas na vertical e observem os avisos de não fumar e manter os cintos afivelados até que estes se apaguem”.
Fazia parte não dizer “e boa viagem”. Além do mais sabia que não seria tão boa assim. A rota estava repleta de nuvens ameaçadoras, CBs. Sua colega Stela, de pouca experiência nesses longos trajetos rezava silenciosamente na galley junto com o comissário Cavalcanti II, de poucas falas , um cagão de primeira, mas com compostura.
Pérola tinha certeza que Stela em breve estaria baseada em terra, na área administrativa. Além de bela mulher, talentosa. Era o seu caminho normal. Não se sujeitaria ao vexame de vomitar durante os vôos.
Ao sobrevoarmos a região de Ubatuba, Caraguatatuba, começou a pauleira. Já tinham recolhido o carrinho e todos os apetrechos do café da manhã. O letreiro com aviso sonoro de afivelar os cintos e não fumar apareceu. Pérola, numa voz calma, informou que entraríamos em uma zona de turbulência e pedia para que todos voltassem aos seus lugares. Tomei meu último e longo gole do Teachers já sem gelo. Guardei o copo na bolsa do encosto em frente, encaixei minha coxa sob o braço da poltrona (junto ao corredor, hábito antigo), fiz sistema com o avião e me entreguei aos solavancos aleatórios, ora pra cima ou para baixo, ora para um lado ou outro. O que se ouvia na cabine era o volume do aumento e redução na potência das turbinas e os gritos e gritinhos femininos e masculinos. As poucas crianças choravam em solidariedade aos seus medrosos pais.
Não demorou muito e estávamos sobre São Paulo, Congonhas. Chovia e ventava. Foi um pouso sofrido, meio de lado. Tarefa para um bom piloto. Esse 737, balãozinho, era realmente o DC3 renascido e melhorado.
Alguns passageiros desceram. Não era uma ponte Rio-São Paulo. Juntei-me à tripulação nos fundos da “aeronave” para aquele cigarrinho proibido. Habitué do trajeto logo estava com uma nova cascavel nas mãos. Ao ver os novos passageiros entrando apaguei meu cigarro e voltei para meu lugar. Abri a Heavy Metal do mês, comprada na livraria do aeroporto e, não demorou, já estava cochilando. Com o som característico da porta fechando, ainda de olhos fechados, levantei minha cadeira, guardei o copo vazio entre as pernas, e me acomodei com os travesseiros. Um para a nuca e o outro para as costas. Lembrei que já tinha dois deles na minha mala, presente de outra tripulação, para uso nas viagens em estradas mal conservadas desse nosso Brasil.
Pérola novamente se dirigiu aos passageiros com sua voz calma e serena:
”Bom dia. Sejam bem vindos a bordo...”
Daqui a pouco estaríamos novamente debaixo de pau. Fiz sistema com a “aeronave” e vamos nessa.
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