Wednesday, December 02, 2015

Contos sem fim – 50% Off



Contos sem fim – 50% Off
(11-03-14)
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Ligou a vitrola baixinho, como naquela música, e botou pra tocar “Love For Sale” do Cole Porter. Ou seria do Gershwin? Não. Com certeza Cole Porter. Assistiu até a um musical daquela dupla brasileira com nome de gringo.
Sua mulher, a terceira, tinha saído para mais uma liquidação. Daquelas 50% Off, 75% Off, Sale... Era a sua diversão. Cara, bem sabia, contingências de um bom convívio.
Foi em uma viagem a negócios à Paris que aconteceu o encontro casual. Mesmo hotel, mesmo metier, vinhos, uísques, cama.
No entanto tudo aconteceu, mesmo, quando se depararam admirando as cataratas congeladas em Niagara Falls. De se perder o fôlego. Daí para separações e juntação foi um pulo.
O apartamento alugado no Leblon os livrava de lembranças antigas, das más e, principalmente, das boas recordações. Sem filhos teriam todo o tempo para si mesmos.
O único problema que via era a diferença de idades. Vinte e cinco anos cravados, até no mês de aniversário. Tinha pleno conhecimento que logo não seria mais aquele garanhão jocoso, partido pretendido por todas as mulheres de sua roda de amigos.
Mas ia empurrando a vida. Seus afazeres não lhe davam tempo pra tais pensamentos.
Como era um sábado poderia por em dia sua leitura. E sua diversão predileta: Escrever sonetos. Sonetos secretos, libidinosos, sensuais quase pornográficos. Ignorava os teclados de computador e continuava fiel à sua Olivetti Lettera 22, portátil. Reabasteceu com uma nova fita (tinha uma gaveta cheia delas), sentou-se confortavelmente em frente a sua mesa em mogno e iniciou a datilografar. Com os dez dedos, como aprendera no curso da Remington.
Não passara nem meia hora quando Elvira, a empregada e faz tudo da casa entrou esbaforida no estúdio com o telefone na mão.
Sua mulher fora atropelada na calçada, quando saía de uma loja cheia de caixas em busca de um táxi.
Não viu quando carro forte de um banco perdeu o controle e, desgovernado, atingiu vários transeuntes distraídos com suas compras.
Saiu às pressas em direção ao elevador não ligando para os seus escritos, sua alma recôndita. Nada mais importava a não ser saber como sua amada estava.
Pelo aglomerado de gente via que estava próximo do local. Apertou o passo. Correu. Duas ambulâncias do SAMU já estavam lá. No chão, sendo cuidada por médicos ou paramédicos - não sabia ao certo - estava sua mulher. Empapada de sangue, mas sem largar as preciosas caixas.
Seus scarpins de cetim estavam um para cada lado, sem saltos. Me viu e se debulhou em pranto, com momentos de riso histérico. Coisa que já conhecia dos embarques perdidos ao chegar no aeroporto atrasados. Sempre acontecia que retivessem o vôo até se aboletar direitinha. Dizia que tinha força espiritual. O importante é que conseguia.
Enquanto os seguranças davam depoimento sobre a ocorrência, as atropeladas já se organizavam em fazer um grupo para acionar a empresa de segurança em uma nota preta. Ouviu-se até que o melhor lugar para se reunir seria o Country Club.
Ajudando a colocar a mulher na ambulância pediu que a deixassem no Copa D’or. Com um pedido bem convincente e generoso toparam. Foi em um táxi atrás. Lá chegando foram encaminhados para a emergência. Qual primeira pergunta? “As caixas? Trouxeram as caixas?” E nada mais falou.
Hoje, na sua missa de sétimo dia, pedi ao pároco da igreja para fazer uma menção a essa loucura das liquidações. Mais uma alma entrou no Paraíso (ou Purgatório, talvez, Inferno nunca) 50% Off.
Essa ainda não era sua hora. Fora da estação.

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