Contos sem fim – 50% Off
(11-03-14)
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Ligou a vitrola baixinho, como naquela música, e botou pra tocar “Love
For Sale” do Cole Porter. Ou seria do Gershwin? Não. Com certeza Cole Porter.
Assistiu até a um musical daquela dupla brasileira com nome de gringo.
Sua mulher, a terceira, tinha saído para mais uma liquidação. Daquelas
50% Off, 75% Off, Sale... Era a sua diversão. Cara, bem sabia, contingências de
um bom convívio.
Foi em uma viagem a negócios à Paris que aconteceu o encontro casual.
Mesmo hotel, mesmo metier, vinhos, uísques, cama.
No entanto tudo aconteceu, mesmo, quando se depararam admirando as
cataratas congeladas em Niagara Falls. De se perder o fôlego. Daí para
separações e juntação foi um pulo.
O apartamento alugado no Leblon os livrava de lembranças antigas, das
más e, principalmente, das boas recordações. Sem filhos teriam todo o tempo
para si mesmos.
O único problema que via era a diferença de idades. Vinte e cinco anos
cravados, até no mês de aniversário. Tinha pleno conhecimento que logo não
seria mais aquele garanhão jocoso, partido pretendido por todas as mulheres de
sua roda de amigos.
Mas ia empurrando a vida. Seus afazeres não lhe davam tempo pra tais
pensamentos.
Como era um sábado poderia por em dia sua leitura. E sua diversão
predileta: Escrever sonetos. Sonetos secretos, libidinosos, sensuais quase
pornográficos. Ignorava os teclados de computador e continuava fiel à sua
Olivetti Lettera 22, portátil. Reabasteceu com uma nova fita (tinha uma gaveta
cheia delas), sentou-se confortavelmente em frente a sua mesa em mogno e
iniciou a datilografar. Com os dez dedos, como aprendera no curso da Remington.
Não passara nem meia hora quando Elvira, a empregada e faz tudo da
casa entrou esbaforida no estúdio com o telefone na mão.
Sua mulher fora atropelada na calçada, quando saía de uma loja cheia
de caixas em busca de um táxi.
Não viu quando carro forte de um banco perdeu o controle e,
desgovernado, atingiu vários transeuntes distraídos com suas compras.
Saiu às pressas em direção ao elevador não ligando para os seus
escritos, sua alma recôndita. Nada mais importava a não ser saber como sua
amada estava.
Pelo aglomerado de gente via que estava próximo do local. Apertou o
passo. Correu. Duas ambulâncias do SAMU já estavam lá. No chão, sendo cuidada
por médicos ou paramédicos - não sabia ao certo - estava sua mulher. Empapada
de sangue, mas sem largar as preciosas caixas.
Seus scarpins de cetim estavam um para cada lado, sem saltos. Me viu e
se debulhou em pranto, com momentos de riso histérico. Coisa que já conhecia
dos embarques perdidos ao chegar no aeroporto atrasados. Sempre acontecia que retivessem
o vôo até se aboletar direitinha. Dizia que tinha força espiritual. O
importante é que conseguia.
Enquanto os seguranças davam depoimento sobre a ocorrência, as
atropeladas já se organizavam em fazer um grupo para acionar a empresa de
segurança em uma nota preta. Ouviu-se até que o melhor lugar para se reunir
seria o Country Club.
Ajudando a colocar a mulher na ambulância pediu que a deixassem no Copa
D’or. Com um pedido bem convincente e generoso toparam. Foi em um táxi atrás.
Lá chegando foram encaminhados para a emergência. Qual primeira pergunta? “As
caixas? Trouxeram as caixas?” E nada mais falou.
Hoje, na sua missa de sétimo dia, pedi ao pároco da igreja para fazer
uma menção a essa loucura das liquidações. Mais uma alma entrou no Paraíso (ou
Purgatório, talvez, Inferno nunca) 50% Off.
Essa ainda não era sua hora. Fora da estação.
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